O Custo Social e a Essência da Civilidade: Uma Análise Filosófica, Sociológica e Histórica
O Custo Social e a Essência da Civilidade: Uma Análise Filosófica, Sociológica e Histórica
A civilização humana foi erguida sobre a base do compartilhamento de responsabilidades. Quando os seres humanos deixaram de ser caçadores-coletores e passaram a viver em sociedades organizadas, tornou-se necessário reconhecer que determinadas pessoas carregam encargos desproporcionais em relação a outras. A divisão desse fardo, muitas vezes invisível no cotidiano, é o que caracteriza a civilidade. Esse conceito não apenas reflete um ideal de justiça social, mas também dá forma às instituições que sustentam o convívio humano.
Nos tempos da barbárie, quando um indivíduo nascia com uma condição que o tornava menos apto para a sobrevivência, como uma deficiência física ou mental, ele frequentemente era eliminado. Esse pragmatismo brutal garantia a eficiência da sobrevivência do grupo, mas negava qualquer noção de humanidade e justiça. Em contrapartida, nas sociedades modernas, reconhecemos que o indivíduo não pode arcar sozinho com um fardo que o destino lhe impôs, e, por isso, criamos mecanismos que redistribuem esse peso entre todos.
Dessa forma, garantir direitos especiais a determinadas parcelas da população não é um privilégio, mas uma exigência do próprio conceito de civilidade. Negar esse princípio significa rejeitar a própria evolução da humanidade rumo a um modelo mais justo e solidário.
A necessidade de dividir encargos sociais encontra respaldo teórico nos princípios do Contrato Social, uma das bases da filosofia política moderna. Thomas Hobbes (1651) descreveu o estado de natureza como uma realidade onde "a vida era solitária, pobre, sórdida, brutal e curta". Para escapar desse caos, os indivíduos concordam em abdicar de certas liberdades individuais em troca da segurança e estabilidade proporcionadas pelo Estado.
Seguindo essa linha, John Locke (1689) e Jean-Jacques Rousseau (1762) argumentaram que a sociedade não apenas deve proteger direitos, mas também garantir que o peso das adversidades não recaia exclusivamente sobre alguns. Esse entendimento se materializa nas políticas públicas que visam reduzir desigualdades estruturais, como assistência social, programas de inclusão e direitos trabalhistas diferenciados para grupos vulneráveis.
No campo sociológico, Émile Durkheim (1893) propôs que as sociedades evoluem de uma solidariedade mecânica, baseada na similaridade entre indivíduos, para uma solidariedade orgânica, onde a cooperação entre funções distintas se torna essencial.
Em uma sociedade complexa, ninguém é autossuficiente; cada indivíduo cumpre um papel específico e depende dos demais. Esse princípio justifica a existência de benefícios para aqueles que enfrentam desafios maiores. Quando um indivíduo nasce com uma doença grave, não faz sentido tratá-lo sob a mesma perspectiva de quem não possui essa adversidade. O conceito de solidariedade social exige que o Estado e a coletividade contribuam para atenuar essas desigualdades naturais.
Em Uma Teoria da Justiça (1971), John Rawls introduz a ideia de justiça como equidade, propondo que as desigualdades só são justificáveis se beneficiarem os mais vulneráveis. Seu princípio da diferença determina que o acesso a direitos diferenciados para certos grupos não é um privilégio, mas sim uma necessidade para garantir uma sociedade justa.
Aplicando essa lógica, políticas que concedem direitos especiais às mães de crianças com autismo, por exemplo, não são atos de benevolência do Estado, mas sim uma exigência moral e política para compensar desigualdades que não foram escolhidas por essas pessoas. O objetivo é impedir que a condição de nascimento seja um fator determinante de exclusão social.
A civilização se define pelo compromisso de repartir o peso da existência entre todos. O conceito de civilidade não é um luxo, mas um pilar essencial da vida em sociedade. Negar que alguns carregam encargos maiores e que esses encargos devem ser compartilhados é negar a própria base da justiça social e do progresso humano. À medida que as sociedades evoluem, avançam também suas estruturas de apoio, reforçando o princípio de que ninguém deve ser deixado para trás.
Garantir a redistribuição do custo social não é apenas um dever político, mas um imperativo moral que reflete o avanço da humanidade rumo a uma existência mais justa e solidária.
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. 1893.
HOBBES, Thomas. Leviatã. 1651.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. 1689.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 1971.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. 1762.
BRASIL. Constituição Federal de 1988.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência).